Debates
Quanto você pagaria por uma vacina contra a Covid-19?
Da Redação | 19 de janeiro de 2021 - 02:01
Por Fernando Mânica
A Constituição brasileira prevê que a saúde é direito de
todos e dever do Estado (art. 196), mas permite expressamente a atuação da
iniciativa privada no setor (art. 199). Ao contrário de outros países, em que
determinados tratamentos apenas são disponibilizados pelo Poder Público, no
Brasil sempre há a possibilidade de escolha pela medicina privada. Esse
permissivo decorre do entendimento segundo o qual quanto mais serviços de saúde
houver, melhor. As pessoas atendidas pelo sistema privado não sobrecarregam o
SUS, deixando sua estrutura capaz de atender quem realmente precisa.
Não obstante, esse raciocínio é incompleto. A oferta de
serviços privados enfraquece o SUS. Quanto menos pessoas de alto poder
aquisitivo e capacidade de mobilização social dependerem do SUS, mais precário
tende a ser o sistema público. Quer uma prova? O SUS é referência em serviços
de alta complexidade e altíssimo custo (dos quais todos dependem) e sofre na
atenção básica e na média complexidade (dos quais apenas pessoas de menor poder
aquisitivo dependem).
Podemos comparar o SUS com a urna eletrônica. Por que a urna
eletrônica funciona tão bem no Brasil? É preciso pensar na noção de ‘bem
público’, entendido como aquele que apenas pode ser usado de modo igualitário
por todos. Um sistema de votação só funciona se todas as pessoas usarem o mesmo
padrão de urna eletrônica. Se ricos pudessem votar em urnas diferentes das dos
pobres, teríamos um caos eleitoral no Brasil. Esse exercício comparativo indica
que é falsa a crença de que a oferta de serviços privados colabora com o SUS,
diminuindo a demanda sobre sua estrutura. Afinal, seu efeito secundário pode
ser muito mais nocivo.
O mesmo acontece com a vacinação contra a COVID-19 por
clínicas privadas. Neste caso específico há, ainda, dois agravantes. O primeiro
é a limitação da oferta de vacinas ao setor público. O segundo é a necessidade
de que todas as pessoas sejam vacinadas, com prioridade para os grupos de
risco.
Estes são os motivos pelos quais, nos Estados Unidos, onde
não existe um sistema público de saúde, o governo federal foi rápido ao iniciar
uma campanha universal e gratuita de vacinação contra a COVID-19. Em terras
ianques não haverá, no curto prazo, possibilidade de pagamento pela vacina.
Todos que quiserem ser vacinados, de Bill Gates a Michael Jordan, devem esperar
sua vez, conforme o plano nacional de vacinação.
Esse padrão de ação governamental tem se repetido mundo
afora. E nem mesmo as indústrias farmacêuticas têm demonstrado interesse em
vender no varejo para grupos privados. A Pfizer, por exemplo, informou que seu
plano inicial é vender a vacina apenas a governos.
Para as indústrias farmacêuticas, tal estratégia é
vantajosa, pois governos são grandes compradores. Um único contrato pode conter
vacinas para toda a população de um país. Para os governos, tal estratégia é
também benéfica, pois é possível dimensionar o quantitativo para imunização de
todas as pessoas, com definição sistêmica de questões logísticas e
epidemiológicas. Para a população, tal estratégia é também salutar, pois
garante imunização universal, de acordo com a disponibilização da vacina e
conforme os grupos de risco.
Esse cenário ideal, contudo, não ocorre no Brasil. Por aqui
a ausência de uma política pública nacional de vacinação deu origem à atuação
paralela de Estados e Municípios. Além disso, empresas negociam a compra de
vacinas para oferta privada. Afinal, como dito acima, a Constituição Federal
garante a liberdade de atuação privada no setor de saúde.
Assim, a venda de vacinas não pode ser simplesmente proibida
no Brasil. Sua comercialização só pode ser evitada caso o Poder Público
requisite tais bens para uso na política pública de vacinação contra a
COVID-19. Além dessa hipótese, o Poder Público pode interferir na venda de
vacinas por meio da regulação, com determinação, por exemplo, de observância à
preferência de atendimento dos grupos de risco. É provável, portanto, que a
depender da produção mundial de vacinal, em pouco tempo tenhamos sua oferta
privada no Brasil.
Meu instinto individual e egoísta de sobrevivência indica
que eu pagaria boa parte de meus vencimentos por uma vacina contra a COVID-19.
Mas minha racionalidade me obriga a dar muito mais para termos em andamento um
plano nacional, único e igualitário de vacinação contra o vírus.
*Fernando Mânica é doutor pela USP e professor do Mestrado
em Direito da Universidade Positivo.