Debates
Lula e Bolsonaro, aproximações
Da Redação | 15 de junho de 2021 - 02:42
Por Victor Missiato
Em sua obra seminal, As origens do totalitarismo, Hannah
Arendt esmiúça detalhadamente as relações de proximidade (e diferenças) entre o
nazismo hitlerista e o comunismo leninista-stalinista. De acordo com a
filósofa, "o líder totalitário tem de evitar, a qualquer preço, que a
normalização atinja um ponto em que poderia surgir um novo modo de vida".
Diante de tal situação, coube a Hitler e Stalin, admiradores recíprocos,
instalarem regimes de "revolução permanente" ou "uma seleção
[racial] que não pode parar". Críticos da democracia liberal,
antissemitas, criadores de política de extermínio em campos de concentração,
Stalin e Hitler estiveram juntos na invasão à Polônia. Suas semelhanças, no
entanto, não escondiam o desejo de eliminar um ao outro
Apesar de muitos acadêmicos e intelectuais recorrerem ao
conflito nazifascismo x comunismo, a fim de ilustrarem o atual cenário político
brasileiro, não é minha intenção aqui perpetuar esse tipo de barbaridade
analítica. Tanto os que comparam o bolsonarismo ao nazi-fascismo, quanto os que
denunciam uma ameaça global comunista, garantem seus espaços na mídia a partir
de um rebaixamento do nível do debate público.
Lula não é comunista. Bolsonaro não é fascista. Embora Lula
já tenha elogiado Hitler, e Bolsonaro tenha admirado Hugo Chávez, é muito pobre
analisar seus perfis e governos a partir de discursos e estéticas. Recurso
importante, porém, empobrecido sem conteúdo histórico-político, a análise de
discurso e a estética vulgarizada empobrecem e rejeitam o debate acerca do
desenvolvimento socioeconômico brasileiro.
Poderíamos aqui, aproximar Lula e Bolsonaro a partir de
diversos discursos, quando, por exemplo, ambos legitimaram a atuação da polícia
em massacres nos morros cariocas. Todavia, nosso objetivo é outro. Por detrás
das retóricas polarizadoras, Lula e Bolsonaro pensam o Brasil de forma similar.
Tanto no lulismo, quanto no bolsonarismo, o desenvolvimento da democracia
brasileira ocorre por meio do que vou chamar aqui de cidadania do consumo.
Baseada em uma estratégia democratizante, porém pouco republicana, a cidadania
conquistada através do consumo não estabelece um desenvolvimento sustentável no
país.
Cientes da necessidade de modernizar o Estado brasileiro,
Lula e Bolsonaro encamparam, no início de seus governos, reformas de caráter
liberal. Porém, a partir do Mensalão e do Caso Queiroz, ambos os governos
estabeleceram um forte estreitamento com o chamado Centrão. Os sentimentos
políticos ligados à esperança logo sairiam de cena, com a saída da ala que viria
a formar o PSOL e a desilusão dos apoiadores da Lava Jato. Restariam os seus
núcleos duros das diferentes classes médias brasileiras, suas políticas
distributivas para as camadas menos favorecidas, bem como o apoio irrestrito ao
agronegócio e o mundo financeiro. Com Lula e Bolsonaro, políticas
assistencialistas como prioridade social, planos de habitação similares aos do
regime militar (1964-1985), financiamento universitário a partir da formação de
grandes oligopólios, e a preservação de uma estrutura fiscal, tributária e
administrativamente desigual, permanecem intocáveis. No Brasil da Nova
República, a miséria diminuiu significativamente, mas o desenvolvimento
industrial e a desigualdade permaneceram estagnados.
Diante disso, está claro que as bases do sistema capitalista
brasileiro não se modificaram com o lulismo e o bolsonarismo. Apesar de
conjunturas completamente distintas (boom das commodities x pandemia global),
as políticas socioeconômicas de ambos os governos não possuem uma diferença
substancial. Pelo contrário, o Brasil não quebra diante do incentivo à política
do consumo, com forte luta contra a inflação e benefícios fiscais a diversos
grupos e sindicatos organizados, mas não rompe sua estrutura fordista, baseada
em preceitos estabelecidos nos anos 1920 e ultrapassados a partir dos anos 1980
na economia global. No Brasil de Lula e Bolsonaro, povo e consumo sobressaem-se
perante sociedade e conhecimento.
Victor Missiato é doutor em História, professor de História
do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília. Membro do Grupo de Estudos e
Pesquisas Psicossociais sobre o Desenvolvimento Humano (Mackenzie/Brasília) e
Intelectuais e Política nas Américas (Unesp/Franca).