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Crônicas dos Campos Gerais: “Tempo de armazéns”
Texto de autoria de Rosana Justus Braga, revisora e formada em Letras Português-Francês pela Universidade Católica do Paraná
Da Redação | 20 de agosto de 2020 - 09:22
Texto de autoria de Rosana Justus Braga, revisora e formada em Letras Português-Francês pela Universidade Católica do Paraná
Viver é assistir às transformações inevitáveis do tempo.
Não raras vezes nos espantamos. Como quando retornei à cidade natal e busquei o velho endereço das balas de alcaçuz da minha infância. E tudo que encontro é uma lanchonete, em plena atividade, onde antes era o armazém do seu Nassib. A rua também parecia outra, tão mudada, não estaria eu, porventura ou esquecimento, perdida na rua errada?
Mas, qual, era ali mesmo que eu ia, menina, gastar meus trocados e encher os bolsos de alegria. Ali mesmo me fartava de prazeres olfativos, quando aspirava o cheiro peculiar da peroba-rosa que guarnecia o teto, do couro curtido dos bornais, da sacaria empilhada, a emanação sutil de cereais diversos, o aroma fresco das conservas, da canela em rama e outras tantas especiarias, os queijos de fazenda, a coalhada fresca, os salames, o fumo barato.
Tudo misturado era o cheiro do armazém do seu Nassib, cheiro que alvoroçava mistérios. Saía de lá atordoada, querendo ficar.
Mas eis que o tempo dos armazéns virou história. História esquecida, pois quem se lembra de comprar grãos a granel, azeite em galão, cebola em réstia, batata em saca, fumo em rolo, vinho em barril? Alguém se lembra ainda, ou por acaso, da doçura amarga do alcaçuz? Evolaram-se todos, suas utilidades e prazeres engolidos pelo sopro de outros ventos.
Também nós nos despedimos de hábitos, preferências e gostos. E de convicções, sem dúvida. Vamos nos ajustando ao novo como quem se espreme em roupa apertada, e tudo que queremos é que se fechem os botões, finalmente.
Não há como viver sem transformar panos velhos em roupa nova. O desconforto é só inicial, depois dá até para se olhar no espelho e apreciar com gosto a improvisada figura. Sensato pensamento.
No entanto, ao me deparar com a tal lanchonete sem identidade, ao aspirar a gordura quente de suas entranhas, confesso que vacilei nas minhas certezas. Pegamos o rumo certo para o futuro?
Boa pergunta em que se perder uma noite de sono.
Ali, onde antes se mesclaram os odores sutis do Oriente com nossa autêntica cultura, germinava a nova mentalidade. Diante dela, eu era apenas uma consciência fora de foco.
Texto produzido no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais.