Debates
O direito à saída temporária e a situação degradante dos presídios brasileiros
Da Redação | 26 de abril de 2024 - 01:34
Por Marcelo Aith
Nos últimos dias, a
chamada "saidinha temporária" ganhou novos caminhos. A Lei 14.843/24,
publicada em edição extra do Diário Oficial da União no dia 11 de abril de
2024, teve origem no Projeto de Lei 2253/22, aprovado pela Câmara dos Deputados
e pelo Senado, introduzindo algumas mudanças importantes na Lei de Execução
Penal, como a extinção da saída temporária para visitar à família (art. 122, I)
e participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social
(art. 122, III).
O Presidente da
República vetou parcialmente o texto, lançando a seguinte justificativa
jurídica: “O instituto da saída temporária está atrelado, exclusivamente, ao
âmbito do regime semiaberto, no qual a projeção temporal de execução da pena
exige, do Estado, atuação proativa para a obtenção do equilíbrio entre (i) a
privação da liberdade de quem infringiu a lei penal (ação punitiva) e (ii) a
sua progressiva reintegração (ação preventiva). Destarte, a proposta de
revogação do direito à visita familiar, enquanto modalidade de saída
temporária, restringiria o direito do apenado ao convívio familiar, de modo a
ocasionar o enfraquecimento dos laços afetivo-familiares que já são afetados
pela própria situação de aprisionamento”. Destaca ainda o veto que “a revogação
do inciso III do caput do art. 122 da Lei nº 7.210, de 1984 - Lei de Execução
Penal, visto que a participação em atividades que concorram para o retorno ao
convívio social está contida no inciso I do caput do art. 3º do Projeto de Lei,
o qual também versa sobre a visita à família, objeto da inconstitucionalidade
vetada.”
O veto presidencial
está em consonância com a mais moderna jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal. O STF, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) nº 347, reconheceu o estado de coisas inconstitucional dos
presídios brasileiros e fez com tintas fortes, conforme se extrai do voto do
Ministro Marco Aurelio Mello, que assevera que “Os presídios e delegacias não
oferecem, além de espaço, condições salubres mínimas. Segundo relatórios do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os presídios não possuem instalações
adequadas à existência humana. Estruturas hidráulicas, sanitárias e elétricas
precárias e celas imundas, sem iluminação e ventilação representam perigo
constante e risco à saúde, ante a exposição a agentes causadores de infecções
diversas. As áreas de banho e sol dividem o espaço com esgotos abertos, nos
quais escorrem urina e fezes. Os presos não têm acesso a água, para banho e
hidratação, ou a alimentação de mínima qualidade, que, muitas vezes, chega a
eles azeda ou estragada. Em alguns casos, comem com as mãos ou em sacos
plásticos. Também não recebem material de higiene básica, como papel higiênico,
escova de dentes ou, para as mulheres, absorvente íntimo.” (Brasil, STF, 2015).
Segundo informações
da Secretarias Nacional de Políticas Penais - SENAPPEN, dados de janeiro a
junho de 2023, as prisões brasileiras contam, em celas físicas, com 649.592
pessoas presas. O número de vagas existentes é de 481.835. Em um sistema
caótico, como o nacional, com déficit de quase 167 mil vagas nos presídios,
como estabelecer um mecanismo de recrudescimento do cumprimento da pena, com a
extinção das saídas temporárias para visitar a família e participação em
atividades que concorram para o retorno ao convívio social, conforme propunha o
Projeto de Lei nº 2.253/2022.
Ressalte-se, por
oportuno, que há 331.557 (janeiro de 2024) mandados de prisão pendentes de
serem cumpridos, consoante se extrai do Banco Nacional de Monitoramento de
Prisões (BNMP), imaginem se fossem todos cumpridos? O sistema
penitenciário entraria em ebulição.
No Relatório Final
da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, formalizado em
2009, já sinalizava que: “[...] a superlotação é talvez a mãe de todos os
demais problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam
insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana.
A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se
revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário”.
No mesmo sentido, o
relatório final da CPI do Sistema Carcerário de 2015 apontou que pouco mudou
entre 2009 e 2014, conforme se extrai do excerto a seguir transcrito: “O
primeiro e talvez o principal problema diz respeito à superpopulação
carcerária, que encontra-se presente em todos os Estados brasileiros. De fato,
segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça (referentes a junho de
2014), “todas as Unidades da Federação exibem taxa de ocupação superior a
100%”.
Um importante
trabalho foi realizado pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC)
da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. O relatório elaborado pelo NESC
escancara as mazelas do sistema penitenciário paulista. Foram inspecionadas 27
unidades prisionais do estado, e foram constatados problemas gravíssimos, tais
como: a) superlotação; b) precariedade das estruturas físicas das construções,
inclusive falta de ventilação, infiltração, rachaduras; c) presença de insetos
e outras pragas; d) falta de assistência médica; d) racionamento de água e de
banho quente; e) limitação de banho de sol; f) falta ou limitação de
fornecimento de material de higiene pessoal; g) falta de alimentação e; h)
violação da integridade física e psicológica e as sanções coletivas.
O NESC aponta que
há uma “combinação perversa de violação de direitos no cárcere, já que a
insalubridade, a superlotação e outras condições degradantes se somam à falta
de assistência médica, odontológica e ausência de outros profissionais de
saúde, o que faz com que seja impossível ser saudável nestes ambientes ou, ao
menos, não contrair nenhuma doença”.
Dentre os problemas
mais sensíveis e estarrecedores apontados pelo NESC é a situação que enfrenta
os presos que fazem uso de bolsa de colostomia e sonda. O relatório destaca que
eles não recebem tratamento adequado para higiene e troca dos equipamentos. Sem
a adequada higienização e manutenção, os equipamentos são vetores de infecções,
que podem levar à septicemia e, consequentemente, à morte.
O relatório aponta
outra questão terrivelmente grave consistente na ausência de distribuição
regular e suficiente dos itens básicos de higiene. Destaque-se a espantosa e
repugnante a situação das mulheres presas no CDP Feminino de Franco da Rocha.
Naquela unidade, inúmeras mulheres relataram aos defensores públicos que, para
suprirem a falta de absorvente feminino, utilizam-se de pedaço de toalha, de
lâmina de espuma e até de miolo de pão para segurar o fluxo menstrual.
No entanto, os
parlamentares, ávidos por agradar seu eleitorado, não estão preocupados com a
vida no cárcere dos presos custodiados nas prisões brasileiras. Pouco importa
que o STF tenha decidido pelo reconhecimento do estado de coisas
inconstitucional dos presídios do país. Os nobres deputados e senadores sequer
têm o cuidado de examinar a efetividade da medida proposta e aprovada por eles.
Não querem saber que apenas uma parcela ínfima de presos que saem
temporariamente não regressa ao cárcere (entre 2% e 5%). Também não estão
minimamente interessados em saber que são menores ainda os índices daqueles que
cometem algum crime nesse período (menos de 1%). O que efetivamente importa é
garantir o voto daqueles que acreditam que os presos em geral (condenados ou
presos cautelarmente) merecem passar pelas dificuldades que passam no cárcere.
O pior é que a
população, mal informada pela grande mídia e sufocada pela cadeia de
desinformação do whattsapp, apoiam o fim da saída temporária (vulgarmente
chamada de saidinha), ao argumento que os causadores de crimes violentos não
merecem essa benesse legal, sem ter o conhecimento que a Lei 14.843, de 11 de
abril de 2024, alterou o §2º do artigo 122 e estendeu a limitação do
acesso ao referido direito ou a trabalho externo sem vigilância direta, ao
“condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou
grave ameaça contra pessoa”, ou seja, restringindo àqueles que efetivamente
poderiam causar um risco à sociedade com a sua prematura saída do sistema.
Anteriormente, não tinha direito a saída temporária “o condenado que cumpre
pena por praticar crime hediondo com resultado morte”, isto é, restringia
substancialmente a limitação.
Portanto,
influenciada pelas informações equivocadas, partem de uma premissa errada, uma
vez que aqueles que eles querem ver no cárcere não farão jus ao direito
previsto no artigo 122 da Lei de Execução Penal.
João Marcos Buch
evidencia, em poucas palavras, o porquê da necessidade de se discutir e
apresentar instrumentos desencarceradores para o sistema penitenciário nacional
e não criar meios de recrudescer ainda mais a vida no cárcere: “Anos atrás,
numa viagem a Berlim resolvi conhecer o Campo de Concentração de Sachsenhausen,
que fica nos arredores da pujante capital germânica. Naquele local, milhares de
opositores políticos, judeus, ciganos, homossexuais foram exterminados durante
a Segunda Guerra Mundial. Ao adentrar no campo, passando pelo emblemático
portal sob as inscrições “Arbeit Macht Frei” (em tradução livre: o trabalho
liberta), caminhando por entre escombros e galpões preservados, senti profunda
angústia”. [...] Hoje, ao pisar no chão de uma prisão e ver o holocausto
daquela população formada em sua maioria por jovens, todos amontoados, juntos e
misturados, confinados em espaços sujos, com ratos e baratas, sem vestes
adequadas, sem materiais de higiene, comendo com as mãos a pastosa ração diária
servida; quando percebo que boa parte não sobreviverá, matará e morrerá antes
dos 30 anos, sinto igual angústia, como a que senti no campo de
concentração”.
Oxalá os
parlamentares consigam depreender que o veto está correto e que a extinção do
direito de saída temporária é inconstitucional, haja vista, repise-se, que o
sistema penitenciário brasileiro se encontra jogado efetivamente as traças e
são verdadeiros trituradores da dignidade das pessoas presas, conforme
reconhecido pelo STF na ADPF 347/DF.
*Marcelo Aith é
advogado criminalista. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum
Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino
e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de
Salamanca