Debates
As lições da crise
Da Redação | 16 de junho de 2021 - 02:12
Por Gaudêncio Torquato
A crise sanitária que continua a assolar o planeta, sendo o
fenômeno mais nocivos dos últimos 100 anos, abre um denso livro de lições para
governos e protagonistas da política. Impõe o que na esfera da educação se
chama “aprendizagem pelo erro”. Um conjunto de situações se escancara: o
despreparo do Estado para enfrentar a pandemia; a concentração da produção de
vacinas em poucos países, submetendo imensa parcela das Nações ao mando dos
produtores; a precária rede social de muitos territórios, que foi drasticamente
destruída desde a crise financeira de 2008; a lentidão das economias no
processo de reconversão de parques industriais para a produção de máscaras e
equipamentos de proteção.
No início, pensava-se que o surto seria rapidamente
controlado. Com a evolução da pandemia e o crescente aumento do número de
mortes e contaminação, os maiores centros de pesquisa, a partir da China,
sacaram suas armas de defesa e passaram a dar respostas mais eficazes no
combate à pandemia, como a produção de vacinas, surgidas em menos de um ano,
feito inédito. Mas aqueles ambientes que ainda sofriam com restrições fiscais
advindas da crise de 2008, como Grécia, Itália, Portugal, Espanha, na Europa, e
outros que haviam cortado benefícios sociais, foram lerdos na operação de
combate à Covid-19.
Os Estados Unidos, cujo papel na liderança mundial foi
corroído na era Trump, um governante inclinado a fechar o país em copas e a
apoiar o clamor nacionalista, despertaram com Joe Biden para a necessidade de
retomar o protagonismo. Depois de vivenciarem um ciclo de despreparo de seu
sistema de saúde, com uma taxa de mortalidade entre as mais altas do mundo, os
EUA passaram a aplicar pacotes de socorro, culminando com os planos de
recuperação anunciados pelo presidente somando cerca de US$ 4 trilhões. Na
Europa, um pacote de 750 bilhões de euros foi a resposta para recuperar a
economia continental.
Quem mais avançou na crise, sob os aspectos econômicos e
geopolíticos, foi a China que, mesmo sob a grita de o vírus ter vazado de um
dos seus laboratórios, na cidade de Wuhan, tem sido o principal produtor de
vacinas. Usando de modo estratégico essa condição, a China avolumou seu
protagonismo no campo científico, o que, em tempos de tormenta como o que
vivemos, acaba quebrando resistências e atenuando a onda crítica que bate no
regime comunista chinês.
O fato é que as Nações abriram os olhos para a meta de
abrigar parques de produção, em um esforço para evitar a superconcentração de
vacinas e insumos em poucos lugares e tentando nivelar o poder geopolítico
entre eles. A ideia inspiradora é a de se chegar a uma produção, hoje
insuficiente, capaz de suprir a demanda global. O susto foi grande, motivando
governos ao compromisso de atrair ou instalar empresas de alta tecnologia para
fabricar equipamentos médicos e fármacos.
No feixe das discussões, incluem-se reclamações sobre a
missão da Organização Mundial da Saúde e sugestões para mudanças em suas
operações. Mais uma vez, o viés ideológico impregna esse foro discursivo.
O pano de fundo mostra o aparente conflito entre dois
discursos: a globalização e o nacionalismo, ou seja, continuar a abrir
fronteiras físicas e ideológicas ou fechar a porteira. Globalização é um
fenômeno que ultrapassa a simples ideia de abertura de fronteiras físicas.
Trata-se de interpenetração de valores, princípios, costumes, enfim, um ideário
cada vez mais exposto ao acesso dos habitantes do planeta e em visibilidade
intensa e permanente pelas redes sociais, inseridas nos eixos tecnológicos da
internet.
Difícil de desmontar tal engrenagem. Já o nacionalismo volta
ao centro do debate na onda da garantia do trabalho, com a pregação de que seus
espaços sejam ocupados pela população originária do país e não por
estrangeiros.
O foro tende a acender os ânimos, principalmente quando se
abrem as cortinas para mostrar as ferramentas tecnológicas tomando o lugar das
pessoas. Sobre o Brasil, as inferências ficam em aberto. Mas o leitor pode
fazer a sua leitura.
Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular
da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato